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Infância em vitrine: o que perdemos quando roubamos o brincar

por Bianca Barki*

Psicanálise pelo CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos e autora da página digital @psicanaliseraiz


Houve um tempo em que a imitação dos adultos cabia inteira dentro de um jogo. Brincar de casinha, varrer com uma vassourinha de plástico, cozinhar numa panelinha era encenar o mundo dos grandes com um distanciamento protegido. Como lembra Winnicott, pediatra e psicanalista britânico, o brincar é o território intermediário entre o mundo interno e a realidade externa. É nele que a criança experimenta papéis, afetos e fantasias sem ainda carregar o peso real que esses papéis têm na vida adulta. No espaço potencial, o “como se” dá à criança a possibilidade de ensaiar a vida, mas sem se ferir com as lâminas afiadas do real.

 

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Freud, no ensaio O poeta e o fantasiar, vai na mesma direção ao dizer que a criança cria um mundo próprio, que leva muito a sério, e que este mundo é movido por desejos, especialmente o de “ser grande”. Ela brinca imitando a vida dos adultos, mas o faz dentro de um campo simbólico em que sabe que está brincando. Essa distinção é fundamental: no jogo, o corpo e os objetos ainda pertencem à invenção, não à exigência real.

 

Hoje, no entanto, esse espaço de liberdade vem sendo invadido. A criança já não brinca de ser adulta, mas é convidada a tornar-se uma versão reduzida da mãe, da influencer de beleza ou da celebridade que aparece no feed. A hashtag #sephorakids, popular no TikTok, mostra meninas de sete, oito, nove anos frequentando lojas da rede de cosméticos para comprar maquiagens e produtos de skincare. Não se trata mais de brincar com um potinho vazio fingindo passar creme, mas de aplicar ácidos, hidratantes e maquiagens importadas em uma pele que ainda nem conheceu a adolescência.

 

No Brasil, até a tradicional fabricante de brinquedos Estrela entrou nesse movimento, lançando a linha Estrela Beauty, maquiagens para crianças a partir de cinco anos. O cenário é revelador: enquanto as vendas de brinquedos tradicionais caem, o mercado de cosméticos cresce. O que antes era tempo de bonecas e carrinhos agora é tempo de batons e paletas de sombra. A lógica do brincar cede lugar à lógica da vitrine.


Essa substituição não é inofensiva. Quando o brincar simbólico é trocado por práticas adultas, o espaço potencial descrito por Winnicott se esvazia. A criança perde um dos poucos territórios onde pode ser criadora de si sem se submeter ao olhar avaliador do outro. O “como se” que permitia experimentar papéis com liberdade dá lugar ao “tem que” da performance estética. Ao trazer para a infância as mesmas preocupações com aparência e manutenção da imagem que já sufocam os adultos, não damos a elas um ensaio para a vida, mas um atalho para a ansiedade.

 

O que estaria por trás desse fenômeno? As redes sociais. O algoritmo recompensa o que se enquadra em padrões estéticos que não são infantis. A câmera do celular funciona como um espelho normativo. Muitas mães repetem com as filhas a vigilância estética que aprenderam para si mesmas, acreditando estar oferecendo cuidado, quando na verdade instalam precocemente um supereu que cobra imagem perfeita e rosto apresentável.

 

As consequências se infiltram cedo. Uma criança que aprende a se preocupar com rugas antes de viver sua primeira decepção amorosa internaliza a ideia de que o valor está no que o outro vê, e não no que ela sente. O corpo deixa de ser um território de descobertas sensoriais e afetivas para se tornar um projeto de marketing pessoal. O self, que antes se formava no brincar, começa a se montar como vitrine.

 

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Há um risco ainda mais silencioso: o rosto da criança talvez nunca tenha sido só dela. Ele já nasce pertencente ao olhar do outro, o da câmera, dos seguidores, dos pais que postam. Não se trata mais de brincar de maquiagem e depois lavar o rosto rindo, mas de manter a maquiagem para registrar a foto perfeita que ficará arquivada na memória digital antes mesmo de se tornar lembrança afetiva.

 

Na lógica do consumo, a infância é apenas mais um nicho de mercado. Na lógica psicanalítica, é um tempo precioso, no qual a criança precisa habitar seu corpo e sua imaginação antes de se submeter às exigências externas. Quando esse tempo é encurtado, o adulto que surgirá pode carregar um vazio difícil de nomear: nunca ter experimentado plenamente o “como se” para diferenciar o que é seu do que é imposto.

 

Talvez a pergunta que devêssemos fazer não seja o que tem de errado em ensinar skincare para crianças, mas o que estamos roubando delas ao fazer isso. Ao antecipar o mundo adulto, roubamos o direito ao ridículo, à fantasia sem filtro, ao feio que depois se torna belo porque era verdadeiro.

 

Freud lembraria que é no jogo e na fantasia que a criança elabora seus conflitos e pulsões. Winnicott acrescentaria que o brincar sustenta a saúde psíquica e a criatividade. Quando esse brincar é substituído por um simulacro de vida adulta, não formamos pequenos adultos seguros, mas sujeitos que se vigiam no espelho, acreditando que sua beleza vale mais do que sua invenção.


No fundo, as #sephorakids dizem menos sobre as crianças e mais sobre nós.

 

Falam de nosso medo do envelhecimento, de nossa obsessão pelo controle da imagem e de nossa dificuldade em tolerar o tempo como ele é. Quando a infância se torna apenas um ensaio para a vida adulta, o que se perde não é apenas o brincar, é a própria possibilidade de vir a ser.


*Bianca Barki é formada em Psicanálise pelo CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, participou do Núcleo Permanente da Psicose do CEP, coordenado pela Dra. Karin de Paula, onde realizou atendimento do CAPS. Participou também do Projeto Escuta CRUSP, de atendimento psicanalitico e psicólogico de estudantes de baixa renda da USP. É autora da página digital no Instagram @psicanaliseraiz, que acumula mais de 450 mil seguidores. No passado, foi voluntária no atendimento aos sobreviventes do 11/09 pela American Red Cross em Nova Iorque (EUA), além de também possuir formação em Administração de Empresas pela PUC- RJ.


Siga o perfil da Bianca no Instagram: @psicanaliseraiz

 
 
 

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